H.G. Wells (1866-1946) é considerado um homem a frente do seu tempo, pioneiro da ficção científica com obras como Guerra dos Mundos (1898) e O Homem Invisível (1897). Escreveu o romance “A ilha do dr. Moreau” – publicado em 1986 – considerado um dos grandes clássicos da ficção científica e horror do século XIX não apenas por conta de seu ponto de vista literário, cuja trama é bem solidificada, despertando o interesse do leitor logo de cara e deixando-o absorto em sua leitura, mas, principalmente, por sua plasticidade filosófica, por questionamentos que transcendem a própria estética textual, podendo servir como uma crítica à religião, à organização social, como uma parábola sobre a crueldade da ciência.
Uma obra sujeita as mais cabíveis interpretações, mas que trazem a relação humanidade x instinto primitivo como dilema central da trama.
O Enredo
A estória do livro é contada em forma de relato/diário por Edward Prendick, um britânico com uma “inexplicável vocação” para ser náufrago, narrando suas experiências insólitas vividas em meio a natureza de uma ilha desconhecida.
Após passado alguns infortúnios, Prendick foi resgatado à deriva no meio do oceano, a mando de um capitão nada amigável, tendo a felicidade de conhecer Montgomery, um médico acompanhado de Mling, seu estranho assistente de traços simiescos, levando uma incômoda carga de animais para uma ilha inóspita, perdida no meio do pacífico. Chegado a ilha, motivado pela hostilidade do capitão e pela recusa de Montgomery em não permitir sua companhia, Pendrick se vê novamente à deriva, entregue ao abandono em alto mar, porém, resgatado por Montgmery, que decide violar as regras para salvá-lo, conduzindo-o ao universo de mistérios e incertezas presentes numa ilha habitada por nativos de aspectos físicos pouco comuns.
Lá, Pendrick conhece Dr. Moreau no qual Montgomery é seu assistente – um conceituadíssimo cientista, famoso nos círculos científicos – porém, censurado por conta de seu padrão aético com o qual conduz seus trabalhos, indo refugiar-se na ilha. Como todo cientista radical em suas ideias, Moreau é um sujeito pouco sociável e que tem sua vida confinada a uma sala secreta, onde produz suas experiências científicas com a estrita ordem de total sigilo.
Certo dia, ao ouvir angustiosos rugidos de profundo horror e dor vindos do interior sala, não demora muito para Pendrick perceber que seus experimentos envolvem animais, uma realidade atroz que o instiga a investigar a ciência e a motivação por trás daquele impiedoso sofrimento, descobrindo uma perversa teoria de vivissecção e procedimentos nada ortodoxos utilizados pelo doutor. É aqui onde o terror, a repulsa e a indignação penetrarão na mente do leitor.
A ilha do Dr. Moreau apresenta uma narrativa fluida, com características híbridas, uma mistura de horror e ficção científica com pitadas de suspense e aventura. O livro não apresenta muitos personagens, o leitor perceberá que não há uma preocupação maior em dar maiores explicações no desenvolvimento da estória de qualquer um deles por se tratar de um relato das experiências vividas por Pendrick. Porém, o enfoque do livro está além da maravilhosa estória que ele deseja nos contar, a obra ressoa a criticidade de seu autor inteligentemente diluída através de seus personagens e dilemas, fazendo tudo aquilo parecer uma espécie de alegoria que retrata a nossa civilização e que toca na matriz do ser humano, em nossa essência primitiva e questiona nosso senso racional à luz de uma linha tênue que separa a razão do instinto animal.
A figura do Dr. Moreau pode muito bem ser entendida como uma metáfora ao cientista louco, apresentando semelhanças com o Dr. Frankstein de Mary Shelley, mas que ao invés de violar cadáveres para dar vida a sua criatura, Moreau opera sua atrocidades em criaturas ainda vivas, indiferente ao sofrimento causado. Tudo por amor à ciência, ao próprio ego que traz para si, atributos de uma divindade com o poder de remodelar a vida, criando uma nova através de uma transmutação não só física, como também mental e até mesmo comportamental. Experiências que fazem da vida, mero instrumento de manipulação e controle, como barro a ser modelado segundo a imagem e semelhança de um pai criador. Uma pretensa paródia negativa de Wells à obra do Criador da raça humana e suas relações com as Suas criaturas.
A filosofia de Wells por trás dos discursos do Dr. Moreau (contém spoilers !)
Wells não dá a Moreau nenhum motivo para seus experimentos, para além da satisfação de um tipo perverso de vaidade, de um deleite estético. Seu fim é aprimorar sua inventividade, evoluir a sua criação, instituindo normas de civilização junto a uma indomável natureza primitiva, selvagem. Motivo pelo qual o escritor Bráulio Tavares aborda a estória como sendo uma forma pejorativa de como o colonialismo europeu procurava “civilizar” os primitivos, já que na época em que o livro foi escrito, estava muito em voga o desbravamento de territórios desconhecidos.
Além disso, no discurso de Moreau, numa tentativa de justificar seus experimentos a Pendrik, observamos outras alegorias que manifestam a subjetividade de Wells.
Em uma das justificativas usadas por Moreau, podemos perceber, por exemplo uma clara alegoria à evolução :
“Cada vez que mergulho uma criatura viva nesse banho ardente de dor, penso: desta vez, queimarei todo o animal até extingui-lo, desta vez produzirei uma criatura racional de acordo com meu desejo. Afinal de contas, o que são dez anos? O homem está sendo aperfeiçoado há cem mil.”
Em outro trecho Wells utiliza do discurso de Moreau para tratar de ética, sobre como a moralidade condiciona nossa conduta :
“O hipnotismo é uma ciência que vem se desenvolvendo e nos promete a possibilidade de substituir os antigos instintos por novas sugestões, enxertadas sobre as ideias fixas que herdamos, ou mesmo substituindo-as. Na verdade, uma grande parte do que chamamos “educação moral” não passa de uma modificação artificial desse tipo, uma perversão do instinto; a agressividade é induzida a virar coragem e auto sacrifício, a sexualidade reprimida se transforma em emoção religiosa.”
No pensamento de Moreau, Wells questiona a nossa moral aprendida, como sendo algo condicionado, uma indução psicológica que adultera a nossa essência primitiva e encaixota a nossa natureza numa ética idealizada, sugestionada. Princípios que substituem práticas mas não modificam verdadeiramente o “eu primitivo” de cada ser humano. Wells questiona: Somos verdadeiramente animais racionais ou animais psicologicamente adestrados ?
Cabe mencionar outro aspecto importante do enredo, um paralelo que discute o papel da religião na sociedade metaforicamente representada pela lei de Moreau. A “Lei” é composta por normas que, dada a origem de cada um de seus monstros no mundo animal, lhes é doloroso ou, mesmo, impossível obedecer – não andar de quatro e não comer carne, por exemplo. Quando algum pobre-diabo inevitavelmente quebra a lei, é punido com a repulsa do grupo, seguida de torturas inomináveis.
“(…) ideias fixas implantadas por Moreau em suas mentes, que estabeleciam limites intransponíveis para sua imaginação. Eles tinham sido hipnotizados, tinham aprendido que certas coisas eram impossíveis, e certas outras coisas não deviam ser praticadas, e tais proibições estavam impregnada.”
A lei de Moreau era mantida como forte controle psicológico, um misto de lavagem cerebral e hipnotismo no qual submetia a todos, independente de cada espécie. Fazendo com que as criaturas travassem uma obstinada guerra entre os mandamentos impostos contra suas necessidades naturais, quase sempre perdida, causando uma regressão ao instinto selvagem. É, sem dúvidas, uma clara alusão do ponto de vista de Wells à religião. Cada criatura representa as peculiaridades de cada ser humano, de sua impulsão natural para as suas eventuais necessidades em desarranjo com o padrão imposto pela religião. Um padrão que homogeniza o homem em detrimento de suas individualidades.
Por fim…
Por fim, o pesamento de Wells acerca da humanidade se completa com sua obra – A ilha do dr. Moreau – uma obra a frente do seu tempo, cujo horror não se limita aos traços e perturbações de seus monstros ou à loucura de um cientista obcecado pelos seus experimentos ou na atmosfera lúgubre que se contrasta com as belezas naturais de uma ilha desconhecida, o terror foge às páginas dessa magnífica obra e deixa-nos a refletir atemorizados com a verdade que ela nos entrega – de que o homem tem a tendência a ser um animal irracional, de que somos predadores de nós mesmos, de que nossa monstruosidade é inata e precisamos das regras sociais, da moralidade, da observância de preceitos éticos, da religião para atenuar a nossa brutal realidade, um padrão que ajusta a nossa consciência, porém, não nos toca a essência.
“Vejo rostos que são perspicazes e cheios de energia; outros que são apáticos e ameaçadores; outros desequilibrados, insinceros; nenhum deles exibe a calma autoridade de uma alma impregnada de razão. Sinto como se o animal estivesse querendo brotar dentro deles; e que a qualquer momento a regressão que testemunhei nos ilhéus se reproduzirá aqui, numa escala muitíssimo maior.”
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