Dossiê de Causos Mal Resolvidos (livro) – Resenha

Com críticas sociais importantes em cima de histórias de terror, Dossiê de Causos Mal Resolvidos retrata bem algumas mazelas de nossa sociedade

Produzir literatura no Brasil não é fácil. Com literatura de terror, mais difícil ainda. E esta dificuldade nos faz fechar os olhos para muitas obras de qualidade, que esperam uma oportunidade para chamar atenção das pessoas certas, no momento certo.

O Projeto

Dossiê de Causos Mal Resolvidos é uma dessas obras, que tenta emplacar a ficção especulativa no gênero do terror, ao mesmo tempo que trata de assuntos bastante atuais, e preocupantes.

Escrito pelos escritores emergentes Diogo Augusto Gonçalves, Rafael Augusto Montassier, Lucas Pelegrino Bonalumi e Lucas Oliveira, todos do interior paulista, a obra reúne quatro contos de terror, de leitura rápida, objetiva e bastante fluida, sempre baseadas na ficção especulativa.

Para os autores, “Atualmente, a ficção especulativa vive um de seus melhores momento no país. É um gênero muito ligado ao público crescente que hoje assiste filmes de super-heróis, séries de fantasia como Game of Thrones e vão na Comic Con brasileira, que hoje é a maior do mundo em número de participantes. Isso se reflete também no mercado editorial. Na lista parcial das 20 obras mais vendidas de 2019, segundo o site Publishnews, sete títulos de ficção especulativa aparecem.”

Regionalismo

Um dos pontos importantes do livro são os cenários e localidades, baseados na cultura interiorana da qual os autores vivenciaram e vivenciam. Para eles, “muito do que é produzido nesse gênero ainda é comandado principalmente pela cultura anglo saxônica e europeia, que contém seus elementos próprios e particularidades. Um diferencial, portanto, de se fazer ficção especulativa fora desse eixo é explorar o background cultural e as diversidades regionais próprias a outras culturas.”

Além das qualidades do texto, recebem também como fundação o prefácio escrito por Oscar Nestarez, autor do livro Bile Negra e colunista da revista Galileu, especialista no gênero terror.

Para os autores, “Além de ser o autor do prefácio, ele também é o nosso consultor e corrobora para que os autores sejam munidos de referências e base teórica sólida. Nesse sentido, ele fez um acompanhamento individual com cada um dos autores dos contos desde suas ideias iniciais até o texto finalizado, contribuindo para a formação literária de cada um deles, além do intercâmbio artístico e networking entre escritores da capital e do interior.”

Para um livro que ainda precisa se consolidar no mercado literário, já é um ótimo começo!

Formato

Dossiê de Causos Mal Resolvidos foi lançado no dia 02 de dezembro de 2020, na Amazon, em formato eBook Kindle. Até o momento, não há versão física do livro. Pode-se obtê-lo gratuitamente, dentro da assinatura Kindle Unlimited, ou adquirido por R$1,99.

Victor Freundt fez a arte da capa, que já assinou desenhos na HQ O Rei Amarelo, e Terra Morta – A Opressão de Vitória. Para os autores, Freundt “virou um grande parceiro deste projeto e tem um trabalho incrível e aterrorizante que casou muito bem com a nossa proposta. Ele criou um desenho original para a nossa capa que os rio pretenses vão entender imediatamente porque remete a um cartão postal e a um símbolo da cidade, só que numa releitura insólita típica ao gênero.”

Capa do livro – por Victor Freundt

Outro ponto forte do livro são as páginas do “dossiê”, no término de cada conto, contando um pouco sobre o autor da história lida. O formato das páginas trabalham bem a realidade com a especulação, trazendo um charme a mais para a obra.

Vamos agora comentar um pouco sobre os quatro contos!

Vírus – de Diogo Augusto Gonçalves

“Em um futuro não muito distante, uma senhora deixa relatado em seu diário virtual como a sociedade foi devastada por um surto de fake news;”

O conto Vírus nos leva para 2040, através da história de um sobrevivente de um surto maligno ocorrido em 2020, uma “pandemia intelectual”. Acompanhamos o sobrevivente escapando de seres furiosos, que querem pegá-lo a qualquer custo – assim como fizeram com sua mãe – enquanto ele está sempre um passo à frente deles. Um dia descobre um aparelho que conta um pouco mais sobre como todo aquele surto começou.

Misturando ficção com uma realidade bastante perigosa, é o conto que nos deixa mais pensativos com a relação político-social de nossa realidade atual. Até que ponto podemos nos tornar caça, ou caçador, em um surto de fake news? Até que ponto isso pode mudar e tornar as pessoas irracionais e violentas?

Ao terminar de ler o conto, fiquei alguns minutos pensativo, tentando separar o que era realidade, e o que era ficção…

Vetor – de Rafael Augusto Montassier

“Um homem interiorano descobre que a cor de seu sangue mudou e sua terapeuta acredita que nele pode estar escondida a chave para entender a epidemia que assola a cidade;”

Dos quatro contos, para nós este foi o mais abstrato, mas ainda assim nos faz bastante pensativos. Enquanto acompanhamos Ana Wilma e Ricardo Takeda na sua tentativa de descobrir o que está causando uma epidemia na cidade, vemos a evolução do relacionamento entre Bruno e Luiza, em parte narrado, em parte contado pelo próprio Bruno, à Dra. Ana Wilma.

Tudo isso é narrado na evolução do relacionamento entre o casal, e os comportamentos tipicamente notados em sociedades patriarcais, difíceis de vencer. A pesquisa de Luiza, em sua área de especialização, traz relação entre violência psicológica e sua relação com as células do corpo.

A história evolui e mostra mulheres precisando de ajuda nas clínicas, enquanto presenciamos a transformação de Bruno em algo grotesco.

Mesmo com uma base mais abstrata, o conto retrata outra faceta bastante presente e perigosa em nossa sociedade: a masculinidade tóxica. Mas isso seria apenas um comportamento social ainda não totalmente relegado, ou seria um comportamento nocivo, baseado em violências presenciadas e vividas, num círculo vicioso difícil de quebrar?

Os Despertos – de Lucas Pelegrino Bonalumi

“Depois de um retorno relutante à São José do Rio Preto, um jovem de ambição voraz é recrutado por uma corporação gerida por cultistas;”

Neste conto narrado em primeira pessoa, aprendemos sobre a trajetória de um jovem sem nome, que se envolve nas entranhas políticas da cidade, através de uma sociedade secreta chamada “Os Despertos”, e aqui podemos presenciar uma grande influência do horror cósmico de H.P. Lovecraft.

Ninguém se conhecia pelos nomes, e tudo é muito misterioso dentro desta sociedade, mas o jovem mostrou que sua ambição era grande o suficiente para crescer dentro da seita, que usa o caracol como símbolo, que aliás de mais um dos exemplos de regionalismo, visto que temos grandes vendedores de escargot na região.

Não sei se foi intencional também, ou não, mas a referência ao caracol e às espirais me lembrou a obra de Junji Ito “Uzumaki – A Espiral do Horror”.

Acompanhamos, então, a narrativa de ascensão e queda do jovem, que se vê cada vez mais envolvido com o Malacólogo (especialista em moluscos), o líder da seita na cidade.

Com tamanho poder na cidade, é uma decisão difícil de tomar, se se envolve mais com a seita, ou se a deixa, para manter sua sanidade. Mas claro, quanto mais se cresce numa sociedade secreta como esta, mais preso a ela você está.

Então, até que ponto vale a pena o crescimento e poder, em troca de sua sanidade e sua vida?

A Fome da Capivara – de Lucas Oliveira

“Moradores de rua começam a desaparecer nas ruas do centro da cidade enquanto uma concentração cada vez maior de capivaras se aglomeram nas imediações. Uma capivara é vista andando como se fosse um humano.”

No último conto do livro, acompanhamos alguns moradores de rua e suas dificuldades para sobreviver mais um dia, mostrando quão difícil a vida dessas pessoas podem ser, pedindo dinheiro, juntando coisas, para conseguir acordar no dia seguinte.

E, quando eles começam a desaparecer, apenas os próprios moradores de rua ficam preocupados e com medo. Afinal, quem se preocupa se um morador de rua some? Para muitos, é um alívio. Quantos Zezés e Miltinhos sumiram por aí, sem que ninguém desse por falta?

E Lucas Oliveira consegue trabalhar muito bem na narrativa da rotina e sofrimentos dos moradores de rua, agora enfrentando um ser que os devora: uma capivara gigante com olhos brilhantes. Aqui o conto retrata mais um ponto importante do regionalismo de São José do Rio Preto: as capivaras.

Batista, um dos sobreviventes da capivara gigante, consegue atrair a atenção de um dos comerciantes da cidade, que se empenha em uma caçada à criatura.

A “capivara gigante”, inclusive, é muito bem construída no desenrolar da história, dado o tamanho do conto.

Será que a capivara gigante se tornará uma ameaça assassinando em série apenas moradores de rua? Afinal, quem vai se dar conta que um ser invisível….sumiu?

Dossiê de Causos Mal Resolvidos – Conclusão

Com narrações fluidas, rápidas e gostosas de ler, nos deparamos com questões sociais que são o verdadeiro terror de cada história. A ficção especulativa tenta nos colocar num cenário de “e se?”, mas as críticas sociais de cada conto são muito reais, e estão muito mais próximos e presentes do que imaginamos.

O terror real que permeia o terror ficcional pode ser muito mais assustador que os monstros e sociedades secretas relatadas nas obras.

Dito isso, podemos concluir que Dossiê de Causos Mal Resolvidos é um ótimo livro de contos de terror, trazendo histórias instigantes e que nos fazem refletir, valendo bem mais que os R$1,99 cobrados pela cópia digital. Então, não perca tempo, e adquira a sua!

Dossiê de Causos Mal Resolvidos foi também contemplado com o prêmio Nelson Seixas de Produção Literária 2020, de São José do Rio Preto.

Ficha Técnica

About Fernando Lobo

Fã de jogos de Terror desde que colocou as mãos em uma cópia de Resident Evil, no Sega Saturn, em 1996. Consumidor frequente de literatura de terror e ficção, busca sempre novos autores neste nicho. Jogo preferido: Silent Hill 2. Livro preferido: O Iluminado.